Semana passada, assisti uma entrevista no programa do Bial que me deixou pensando por horas. Era com o repórter que escreveu sobre Vincent Van Gogh — o Edney Silvestre. O jeito como ele falava do pintor era diferente, quase reverente, como quem entende que está tocando num mistério. E enquanto ouvia, algo dentro de mim começou a se remexer.
Van Gogh. O homem que pintava o que via por dentro, não o que via por fora. O cara que transformava dor em cor, solidão em pinceladas. Que colocou o coração inteiro em cada quadro… e morreu achando que tinha fracassado.
Parece injusto, né? O cara só vendeu um quadro em vida — ‘A Vinha Encarnada’, em 1890, para a Sra. Anna Boch, por 400 francos (foto acima) — e só depois da morte foi reconhecido como gênio. O mesmo mundo que o ignorou passou a venerar suas obras. A sociedade que o achava estranho hoje paga milhões por um pedaço daquilo que ele tentou expressar. A fama do artista só começou após sua morte.
E aí fica a pergunta: por que as pessoas sofrem tanto por aquilo que fazem e só são reconhecidas depois que partem? Por que a beleza, às vezes, precisa da distância do tempo pra ser percebida?
A resposta não vem fácil. Mas talvez esteja no próprio tempo. A verdade é que a gente vive num, mas o que a gente faz pode pertencer a outro. Alguns de nós nascem pra plantar sementes que só vão florescer em outras estações. Van Gogh foi um desses. Ele pintava pra um tempo que ainda não existia. O olhar dele era adiantado demais pra um mundo que ainda enxergava em preto e branco.
E esse risco é real pra qualquer um que viva com propósito: o risco de ser reconhecido em outro tempo. Às vezes, o que a gente faz hoje só vai ser entendido lá na frente — quando as pessoas finalmente tiverem olhos pra ver o que a gente quis mostrar.
Mas sabe o que é bonito nisso tudo? É que significa que o que tu faz não morre contigo. Que tua essência, tua verdade, tua arte — continuam ecoando, mesmo depois que o corpo se cala.
A parte difícil é segurar firme enquanto o tempo ainda não entende. Enquanto o mundo te olha como “estranho demais”, “intenso demais”, “fora da curva”. O mesmo mundo que mais tarde vai te chamar de “visionário”. O problema nunca foi a falta de valor. Foi o atraso do olhar.
Talvez o que Van Gogh mais ensine não seja sobre arte, mas sobre resistência. Ele continuou pintando mesmo sendo rejeitado. Continuou acreditando na própria visão quando ninguém mais via nada. Continuou fiel ao dom que Deus colocou dentro dele — e isso, no fim, foi o verdadeiro sucesso.
O reconhecimento é bom, claro. Ele dá ânimo, aquece o ego, faz a gente sentir que valeu o esforço. Mas o verdadeiro impacto é invisível — tá naquela pessoa que lê um texto, escuta uma música ou olha um quadro e se sente tocada de um jeito que muda algo por dentro.
O mais curioso é que, na maioria das vezes, o autor nunca vai saber. A gente planta, mas não vê a colheita. E talvez seja assim de propósito. O aplauso mais importante não vem da plateia — vem do Céu.
Pensando bem, talvez o tempo não erre. Talvez ele só demore pra entender. Alguns nascem pra viver o agora. Outros nascem pra preparar o depois.
E é aí que mora a beleza de tudo isso: a sensação boa de saber que o que tu faz vai servir pra alguém, mesmo que esse alguém nem tenha nascido ainda. É o prazer silencioso de quem planta pra amanhã, sem pressa, com a certeza de que vale a pena. Sim, ser reconhecido é bom — mesmo que dê medo. O medo da exposição, da cobrança, da expectativa. Mas o verdadeiro valor não tá na fama; tá no alcance. No fato de alguém, um dia, mudar de caminho por causa de algo que tu escreveu, disse ou fez.
E se isso acontecer, mesmo que tu nunca saiba, já valeu. Van Gogh pintava pra sobreviver, não pra ser famoso. A pintura era a forma que ele encontrou de não enlouquecer num mundo que não o entendia. E ironicamente, o mundo só começou a entendê-lo depois que ele se foi.
Talvez o tempo só entenda tarde demais. Mas Deus não. O verdadeiro reconhecimento? Saber que tuas palavras, tua vida, tua obra tocam alguém. Que ajudam alguém a não desistir. O resto… é vaidade. Então, se um dia duvidar, lembra de Van Gogh: o tempo pode demorar, mas Deus nunca se atrasa. Segue pintando. Escrevendo. Vivendo.
Segue plantando pra amanhã.
Mas entre viver o presente ou deixar que as próximas gerações reconheçam, às vezes Deus nos dá um feedback positivo no meio de tantas incertezas, só para mostrar que estamos na direção certa. Quando terminei de escrever esta crônica — pelo menos eu achava que tinha terminado — dei uma saída rápida. Ao voltar para casa, uma pequena surpresa me esperava. Daqueles momentos que parecem nada, mas fazem o coração disparar. Tipo o amanhã vindo me visitar.
Subindo para meu apartamento, encontrei o Guto — Augustus, meu vizinho de nove anos, aquele mesmo guri que conheço desde quando mal alcançava o corrimão — descendo as escadas com a mãe. Sempre trocamos umas palavras rápidas: “Eae, amigão!” Falamos sobre escola, basquete, karatê, coisas de quem se cruza na correria do dia a dia.
Mas ontem foi diferente. Ele me olhou com uma seriedade leve, dessas que só as crianças têm, e perguntou:
“Tu conta histórias, né?”
Ri meio sem jeito. A mãe dele sorriu, e eu respondi:
“Sim, eu conto histórias.”
Ela completou:
“Ele viu o senhor nas crônicas.”
E ele: “Ah, o senhor conta histórias!”
Na hora, senti algo além da ternura — como se todo o tempo investido na crônica sobre Van Gogh tivesse me dado um abraço.
Porque, olha só: a crônica fala sobre plantar sementes que só a próxima geração entende. E de repente, a próxima geração estava ali — de uniforme escolar, mochila nas costas, olhando com aqueles olhos que ainda acreditam em tudo — dizendo:
“Eu te reconheço.”
Não o reconhecimento da fama, mas o reconhecimento da essência. Puro, sem vaidade, sem aplauso. Nascido do sentir.
Depois que subi, pensei: talvez o tempo não seja tão demorado assim. Talvez Deus mande pequenos sinais para mostrar que a semente está viva, que o que fazemos já começou a tocar corações, mesmo sem perceber.
Se eu precisava de um sinal de que escrever vale a pena, o Guto foi esse sinal. A vida tem dessas ironias lindas: a crônica sobre o tempo que entende tarde demais acabou sendo entendida cedo demais… por um menino, meu amigão dos curtos bate-papos.
E foi ali, no meio da escada do condomínio, que tudo fez sentido: as palavras não morrem; elas apenas esperam quem esteja pronto para ouvi-las. Às vezes, o “amanhã” chega na voz de uma criança dizendo:
“Tu conta histórias, né?”
A partir de hoje, cada vez que eu sentar para escrever, vou lembrar daquele olhar curioso do Guto. Porque agora sei: o que a gente planta para amanhã, Deus pode fazer florescer até num simples encontro de escada.






