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Estatuto da Criança e do Adolescente completa 30 anos nesta segunda

Há exatos 30 anos era sancionada no Brasil a lei 8.069, mais conhecida como ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Pela lei, são consideradas crianças quem tem até 12 anos incompletos e adolescentes as pessoas entre 12 e 18 anos de idade.

Embora o embrião das mudanças trazidas por essa legislação tenha surgido com o artigo 227 da constituição federal, é com o ECA que crianças e adolescentes saem da condição de submissão ao poder familiar e passam a ser considerados sujeitos de direitos. É a primeira grande conquista.

Conforme o presidente da Comissão da Criança e Adolescente da OAB/SC (Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina), Enio Gentil, o entendimento a partir do estatuto é de que as pessoas não adultas também têm direitos. “São direitos sociais, fundamentais, civis, direitos humanos em geral. Elas não são propriedade da família nem do Estado, ainda que estejam sob sua tutela”, afirma Gentil.

Na prática, isso significa que esse público deixa de ser visto como menor, alguém que não está em primeiro plano e que não pode escolher ou opinar. “Essa visão adulto cêntrica da sociedade perdurou por muito tempo e ainda a combatemos. O ECA traz um novo olhar sobre o direito de expressão, do protagonismo, de ser ouvido e de participar de decisões que os afetem”, diz a psicopedagoga especialista em proteção infantil, Sara Oliveira.

Trabalhando na Bahia como gerente de projetos da Plan International Brasil – ONG que atua há mais de 20 no Brasil, na promoção do direito das crianças, Sara considera que outra conquista importante do estatuto é a prioridade absoluta. Prevista no artigo 4º do estatuto, essa prioridade é estabelecida como dever não só da família, mas do estado e de toda a sociedade.

Desafios atuais

Na esteira das mudanças promovidas nessas três décadas, o ECA continua enfrentando desafios. E um dos maiores é a falta de ação do Estado com políticas públicas focadas para infância e adolescência.

“Para garantir a prioridade absoluta são necessárias políticas que dialoguem com a necessidade das crianças. Há uma demanda reprimida no âmbito da saúde e da educação e para mudar esse quadro tem que existir a previsão no orçamento. Infelizmente, muitos municípios ignoram o Orçamento da Criança e do Adolescente”, aponta Sara.

Ela cita ainda a falta do Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes para estabelecer uma política de estado e não de governo, e da pouca importância dada ao Fundo da Infância. “Poucas pessoas sabem que podem doar sua restituição do Imposto de Renda para esse fundo. Ele serve para arrecadar recursos para implementar ações específicas voltadas a esse público, mas nesse cenário, mesmo estando prevista em lei, a prioridade absoluta não se configura na prática”, diz.

Para a psicopedagoga, é preciso que toda a sociedade cobre dos gestores públicos a garantia desses direitos e que os gestores levem em conta essa prioridade no orçamento plurianual.

Apoio para vítimas de violência

Outro desafio enorme é garantir a rede de proteção no caso de vítimas de violação dos direitos. “Faltam políticas específicas de atendimento para as vítimas de violência. Processos judiciais são longos e, em muitos casos, elas continuam convivendo com seus violadores”, afirma Sara.

Tal preocupação se justifica, no momento em que olhamos os dados do relatório do Disque 100 (Direitos Humanos), divulgado pelo Ministério da Mulher, da Cidadania e dos Direitos Humanos. Segundo o levantamento, em 2019, o maior número de denúncias de violações de direitos humanos foi no grupo de crianças e adolescentes.

Entre todas as denúncias recebidas, cerca de 55% do total aconteceu nesse grupo, com 86.837 denúncias, 14% a mais do que em 2018. E as principais violações sofridas foram negligência, violência psicológica, física, sexual, institucional, e exploração do trabalho, conforme o gráfico mostra abaixo. Os casos de negligência saltaram de 21% do total de violações em 2018 para 38% em 2019.

Distribuição de denúncias por tipo de violação – Foto: Relatório Disque Direitos Humanos/MMDH/NDDistribuição de denúncias por tipo de violação – Foto: Relatório Disque Direitos Humanos/MMDH/ND

Outro ponto relevante a ser considerado no exame das violações contra crianças e adolescentes é o local de ocorrência. O relatório apontou que 52% das violações ocorreram na casa da vítima e 20% foram praticadas na casa do suspeito.

Em relação ao autor, a maioria das ocorrências é praticada pelo pai e a mãe, que aparecem em 58% das denúncias. Sara explica que as mães vêm em primeiro lugar como maior violadora nos casos de negligência, enquanto pais e padrastos aparecem como principais autores nos casos de violação sexual.

Relação vítima x suspeito – Foto: Relatório Disque Direitos Humanos/MDH/DivulgaçãoRelação vítima x suspeito – Foto: Relatório Disque Direitos Humanos/MDH/Divulgação

“Sabendo que a grande maioria das violações acontece no ambiente doméstico, a situação tende a se agravar na pandemia, com as crianças fora da escola e convivendo com seus abusadores”, aponta Sara. “Isso traz o desafio de pensar sobre a fragilidade da garantia de direitos em um momento que a rede de proteção, que envolve os conselhos tutelares, funciona em regime de plantão”.

Por fim, Enio Gentil destaca dificuldades no cumprimento do artigo 100 do ECA, que prevê participação das crianças em decisões a seu respeito, principalmente no campo judicial. “É um grande desafio para a OAB pensar na questão da infância e juventude para que ela possa ter a palavra em casos de guarda, direito à saúde. Elas não são totalmente incapazes, têm uma capacidade peculiar mesmo sem a experiência do adulto, portanto devem ser ouvidas”, argumenta.

Pouco entendimento popular

Mesmo com as conquistas, há um certo descrédito da população em relação ao ECA. “Quem diz que o estatuto é para defender bandidos, não conhece o ECA”, diz Sara.

“O estatuto prevê direitos e responsabilidades – da família, da sociedade e do governo em relação à criança. É preciso entender que um adolescente no crime foi recrutado por um adulto, e que essa é uma das piores formas de trabalho infantil. Assim como a prostituição e a exploração para o trabalho no tráfico de drogas também caracterizam trabalho infantil”, aponta a psicopedagoga.

Na opinião dela, o que acontece é um processo de negação de direitos onde as três instâncias que precisam garantir os direitos da criança e do adolescente falharam (família, sociedade e estado). “Há muitos mitos em relação ao estatuto que levam ao imaginário de que ele veio para atrapalhar, mas isso não é verdade. Por exemplo, no caso da redução da idade penal, os adolescentes seriam responsabilizados como adultos, saindo da medida socioeducativa e indo para a prisão, onde só concluirão a escola do crime”, avalia.

“Temos um sistema nacional de medida socioeducativa que tem uma concepção muito legal, mas o que vemos é que há um investimento intencional para criminalizar o adolescente. Os passos têm que ser seguidos: advertência verbal e escrita do juiz, prestação de serviços comunitários, liberdade assistida, até chegar à privação de liberdade”.

Em muitos casos, nem a rede de proteção vê a pessoa como adolescente, mas como infrator. “Para os que querem sair da vida do crime, não há acolhimento pela sociedade: para voltar à escola tem que acionar o Ministério Público, não entram no programa Jovem Aprendiz… só quem o abraça é o crime, para onde ele acaba voltando”, afirma Sara.

Fiscalização

Para Enio Gentil, da OAB/SC, cabe a todos fiscalizar o cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes. “Cabe a todos nós, mas especificamente os conselhos tutelares municipais, órgãos estaduais, OAB, MP, defensorias públicas, delegacias da infância, e o Conanda – grande órgão criado no ECA que infelizmente não está crescendo por falta de estrutura”, diz.

Sara lembra que o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) vem sofrendo duros golpes por parte do governo. “Um decreto presidencial retirou a representação da sociedade civil do conselho, o que era fundamental. Nos mobilizamos, fizemos abaixo-assinado e conseguimos reverter. Mas é desgastante ter que lutar para manter o que já conquistamos até aqui. Não queremos dar nenhum passo atrás, porque o ECA é a base legal para esse enfrentamento dos direitos desse grupo da população”.